Por José Luiz Spigolon* De início se faz necessário entender a origem da crise. É do saber geral que muitas dessas instituições estão em funcionamento no Brasil há mais de 300 e algumas acima de 400 anos, caso da Santa Casa de Santos (SP), fundada em 1543. Todas são produto do esforço da sociedade para dotar as respectivas comunidades de recursos assistenciais no campo da saúde e por elas mantidas através de contribuições e doações espontâneas. Assim, cresceram e constituíram invejáveis patrimônios e acervos históricos. Presentes na maioria dos municípios brasileiros, a partir de 1970 foram chamadas a contribuir com o Governo Federal e auxiliá-lo no atendimento à parcela da população beneficiária da cobertura médico-assistencial patrocinada pelo Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS) e, logo a seguir, também para o Funrural. Isso se constituiu num marco na história dessas instituições, pois, prestando serviços ao Governo, a população passou a confundi-las como sendo instituições mantidas por ele e, até mesmo, a considerá-las governamentais. Em decorrência disso, reduziram-se as tradicionais contribuições e doações ao nível de nenhuma significância, dando início ao subfinanciamento das suas atividades. No início da década de 80, umas poucas já apresentavam desequilíbrio econômico-financeiro face à remuneração praticada pelo Governo, especialmente em relação aos serviços prestados via convênio Funrural. Antes de concluída essa década, foi instituído o Sistema Único de Saúde (SUS), sucessor do INAMPS e do Funrural, mantendo-se a prática de remunerar por produção os serviços prestados e por valores defasados em relação aos respectivos custos. No caso da média complexidade hospitalar e ambulatorial ? que constitui o maior volume dos serviços comprados pelo SUS ? os estudos técnicos comprovam a seguinte realidade: para cada R$ 100,00 gastos, o SUS reembolsa apenas R$ 60,00. Essa diferença é que está corroendo as finanças do segmento filantrópico da saúde, descapitalizando as instituições e impondo-lhes um progressivo e dramático endividamento com bancos, fornecedores, passivos trabalhistas, tributos e contribuições retidas de funcionários e pessoas jurídicas que lhes prestam serviços. A agravar ainda mais essa situação está a postura adotada por razoável número de gestores do SUS que, deliberadamente, atrasam os pagamentos dos valores que lhes são devidos, mesmo tendo o Fundo Nacional de Saúde realizado os repasses financeiros no prazo conveniado. Isso impõe aos prestadores de serviços pesados encargos financeiros para manterem o fluxo de caixa minimamente necessário a não-interrupção da prestação dos serviços à população. Da mesma forma, muitos hospitais acabam vítimas do já tradicional “calote” (desculpem, mas não encontro outra palavra) praticado por alguns gestores que autorizam internações, através do laudo médico, e depois não as pagam, alegando falta de teto financeiro para tal. Em abril de 2005, a Confederação das Santas Casas de Misericórdia, Hospitais e Entidades Filantrópicas (CMB) entregou ao Ministro da Saúde, Humberto Costa, um relatório que apontava para a existência de um estoque de aproximadamente um milhão e duzentas mil internações pendentes de pagamento e para as quais nenhum pagamento foi realizado até os dias atuais. Em que pese a legislação para certificação dessas instituições como filantrópicas exigir-lhes destinar, no mínimo, sessenta por cento dos seus serviços ao SUS, na prática acabam por superar esse mínimo e trabalham na casa dos 70 a 90% para poder atender a demanda. Em 2006, foram responsáveis por 4.565.359 (40,5%) das 11.291.445 internações realizadas pelo SUS. Os hospitais públicos ficaram com 43,3% e os lucrativos com 16,2%. Por outro lado, a maioria dos quase 1.800 estabelecimentos hospitalares sem fins lucrativos que atualmente prestam serviços ao SUS é constituída de hospitais de pequeno porte possuindo, no máximo, 80 leitos, muitos deles com gestão obsoleta, pouco profissionalizada, o que impede a adoção de estratégias capazes de amenizar o impacto negativo advindo da prestação de serviços ao SUS. Esse despreparo para lidar com a complexidade própria do organismo hospitalar levou muitos a tomarem decisões equivocadas, especialmente abrindo mão de serviços que geram receitas e terceirizando-os para profissionais médicos ou pessoas jurídicas, sem nenhuma vantagem para a instituição. Portanto, entendo que a crise tem suas raízes na associação destas três condições: extinção das contribuições e doações espontâneas; subfinanciamento dos serviços prestados ao SUS e baixa qualidade da gestão. Se assim o é, a saída para a crise está em: • Rever imediatamente as bases da prestação de serviços ao sistema público de saúde (SUS), para condições mais justas, quais sejam: a) adequação mínima da remuneração aos custos incorridos, permitindo-se a recuperação do equilíbrio econômico-financeiro do convênio, conforme previsto na legislação de concorrências públicas (Lei nº 8.666/93) e na Lei Orgânica da Saúde (Lei nº 8.080/90). Mas, para que isso ocorra, será necessário que o Ministério da Saúde aceite reajustar os valores constantes das tabelas do SUS ? por ele consideradas como de referência mínima nacional ? ou os gestores estaduais e/ou municipais se disponham a completar esses valores conforme regulação do financiamento do Sistema Único de Saúde; b) exigir a assinatura de instrumento jurídico (convênio) com garantias bilaterais, nos termos da Lei de Licitações, em substituição à proposta do Ministério da Saúde, expressa na Portaria GM/MS n° 3.277, de 2006, considerada unilateral pelo segmento, e no qual fiquem definidos limites claros dos serviços a serem prestados. • Tomar como exemplo de sucesso a política adotada pelo Governo de São Paulo que, através de Organizações Sociais (OSs), melhorou a qualidade da assistência disponibilizada à população de grandes áreas urbanas e vem garantindo o equilíbrio econômico-financeiro dos convênios mantidos com tais instituições; • Ampliar a oferta de serviços às operadoras de planos e seguros de saúde, mesmo que isto implique na redução ao SUS; • Desenvolver, onde couber, plano próprio de saúde, nos moldes do que vem ocorrendo com pouco mais de uma centena de hospitais filantrópicos e que já agregam quase dois milhões de beneficiários; • Retomar ou renegociar em bases mais justas (ganha-ganha) os serviços que geram receitas e que estão terceirizados para profissionais médicos ou pessoas jurídicas; • Profissionalizar a gestão e investir na melhoria contínua da qualidade dos serviços ofertados, tornando-os atraentes para os clientes do segmento da Saúde Suplementar. Entretanto, a meu ver, essas estratégias trarão resultados mais efetivos se o Governo se sensibilizar, entender a importância do segmento e disponibilizar um programa oficial para a reestruturação financeira das entidades, possibilitando o alongamento do perfil do estoque das dívidas consolidadas, com dois anos de carência e dez para amortização do principal. Há informações de que o Governador do Estado de São Paulo, José Serra, solicitou aos seus assessores estudos que possibilitem socorrer financeiramente as Santas Casas e hospitais filantrópicos do Estado e em situação de crise. O certo é que não se pode adiar a discussão sobre a crise do setor e sobre o papel social/comunitário desempenhado pelos hospitais sem fins lucrativos no campo da assistência à saúde, quer como atividade complementar no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) e/ou atuando na Saúde Suplementar. Neste caso, operando com planos próprios de saúde e prestando serviços à clientela das operadoras que estão no mercado. Em nenhum dos casos exclui-se a missão de origem: assistir gratuitamente parcela da população, observadas suas limitações de caráter financeiro e técnico. Os prejuízos ao patrimônio e à qualidade da assistência prestada pelas instituições filantrópicas ? produtos do subfinanciamento dos serviços prestados ao SUS ? têm de ser repensados e decisões necessitam ser tomadas, urgentemente. Mesmo que isso implique, em não se tendo alternativa, na redução drástica ou total da participação complementar da instituição no sistema público de saúde. Não estando os gestores do SUS preocupados com o mal que o Sistema vem causando ao segmento e se nada fazem para estancar essa hemorragia, melhor será reduzir a prestação de serviços a eles, focando objetivos em ações sustentáveis, do que manter-se na situação atual e encerrar as atividades num futuro muito próximo. O ônus se eternizará sobre os dirigentes omissos nessa discussão. As instituições que já implementaram mudanças neste sentido estão em melhores condições e hoje contam com outros recursos e alternativas para uma adequada sustentação dos seus negócios. As que ainda permanecem em fase de transição ou mesmo de estagnação estão com dificuldade em visualizar o próprio futuro. Basta, portanto, sair da acomodação e tomar as atitudes que o momento está a exigir. *José Luiz Spigolon é Superintendente da Confederação das Santas Casas de Misericórdia, Hospitais e Entidades Filantrópicas (CMB), desde 1991; Administrador de Empresas; pós-graduado em Finanças (FGV) e em Administração Hospitalar; Geógrafo; e Contabilista